...No Hay Dinero!
Correu pelo Colégio a ideia de aproveitar da melhor maneira o enquadramento com o Rio Tejo, na prática de exercício físico em variante terrestre e aquática: descida até ao Tejo, que ficava a cerca de um quilómetro de distância, indo pelos montes abaixo – variante terrestre – para a prática da canoagem naquele espaço onde as águas eram quase paradas – variante aquática.
O assunto não era de modo algum pacífico nem de fácil aceitação, mas colhia as boas graças de muitos alunos e de muitos encarregados de educação e discutia-se com frequência, quer entre alunos, quer entre a Irmandade, quer ainda entre estes e os pais dos alunos, havendo em qualquer dos lados, quem apoiasse e quem contestasse (como em todas as questões, onde há sempre opiniões que não convergem).
Num dia em que já todos os rapazes do serviço (*) tinham acabado as suas obrigações da hora de almoço, estando a tomar a sua própria refeição na divisão anexa ao refeitório dos Irmãos, que estavam por sua vez já naquela fase das sobremesas e do prazer de saborear o repasto – é sabido que os frades comem que nem uns abades – ouviu-se acalorada discussão, à qual prestaram a máxima atenção.
- Se hacen media docena de canoas y los chicos practican ejercicio.
- Per, y las aguas? Es peligroso.
- Compram-se Bóias!
- Y después se vuelcan las canoas, es muy peligroso.
- Desde que haja bóias para todos, não há perigo nenhum!
- Y los remos? No creo que sea buena idea.
- Pero es bueno como ejercicio.
E assim iam continuando a discussão com algumas misturas de linguagem, pois os Irmãos Portugueses falavam Português correcto, e os Irmãos Espanhóis, quanto mais nervosos e irritados ficavam, menos se esforçavam por bem falar em português; no fundo, entendiam-se nas falas mas não chegavam a acordo quanto ao tema até que, repentinamente, se ouviu uma voz forte e determinada que pôs fim à discussão:
- No hay dinero.
Disse o Irmão Borges, do alto da sua imponência e enorme barriga (de frade, claro).
E pronto, nada mais se ouviu, silêncio total e de canoagem acabou a discussão. Passados uns instantes, à saída – saíam pela sala onde os rapazes do serviço comiam – ainda um dos frades portugueses se encostava ao Irmão Borges, a dizer:
- Mas ó Irmão Borges, isto até nem fica muito caro, é só...
- No hay dinero, caramba, será necesario repetirlo de nuevo?
E nunca mais no Colégio se ouviu de falar de exercício em variante terrestre e aquática. Restou a prática em variante terrestre, também saudável e sem custos acrescidos.
António J. Branco, In, Figuras de Cera
(*) Grupo reduzido de alunos que acumulavam os estudos com o serviço de refeitórios e cozinha como forma de pagamento da sua mensalidade.