Máquina (Temperamental) de Fazer Gelo
Campo Militar de Santa Margarida, Mil Novecentos e Setenta e Oito.
Verão quente (não o de Setenta e Cinco mas o deste mesmo ano), calor, muito calor!
A Messe de Oficiais de uma das unidades do Campo Militar tinha o privilégio de estar equipada com uma máquina de fazer gelo: uma “geringonça” na qual se despejava água e, ao fim de algumas horas, saíam de lá pedras de gelo. Para quê? Ora, para os oficiais utilizarem nas suas bebidas a fim de refrescarem as respectivas e empoeiradas gargantas, fruto das características de um campo que, para além de militar era mesmo isso, um campo! Mas a Messe de Oficiais em geral e a maquineta em particular, forneciam outros utentes de outras messes que, “pobrezinhas” em recursos, não dispunham de tais luxos.
A máquina, a dias tantos, resolveu deixar de cumprir o seu dever; recusou-se a desempenhar a sua função. Chegou o meio-dia e meia, hora a que, obrigatoriamente, os utentes tinham (acho que ainda têm mas isso é outra crónica) de se deslocar até à messe para cumprir o sempre doloroso dever de saborear o Martini (que às vezes se chamava Favaios ou Moscatel) com algumas pedras de gelo à mistura – a quantidade de pedras dependia da dieta do utente e não da mistura!
Não havia gelo, só havia aperitivo o qual, mesmo fresco e com casca de limão, não era a mesma coisa.
Chamado o gerente de messe e inteirado da situação, mandou este que alguém por seu mando mandasse chamar (há que respeitar a hierarquia que sempre foi coisa muito bonita) a assistência técnica que era prestada por uma empresa de Abrantes, a cerca de trinta quilómetros dali. Hoje já não conseguiam ir senhor tenente (gerente de messe), compreendia, enfim, mas amanhã com certeza que sim.
Entretanto, pouco depois do almoço, a máquina “despejou” pedras de gelo. Mandem cancelar a assistência à máquina de gelo, mandou o tenente. Com certeza meu tenente!
Mas no outro dia ao almoço (por volta das 12:30, como sabemos), a máquina voltou a não cumprir aquilo para que estava tecnológica e disciplinarmente obrigada. Telefone-se à assistência e que venham mesmo hoje. Pode ficar descansado meu tenente!
15:30H do mesmo dia e o técnico chega ao local “dos confrontos”. Vamos lá então ver o que se passa. Não se passava nada, a máquina despejava pedras de gelo como uma desalmada a gozar com o pagode. Mas, mas…Começou agora mesmo disse o barista da messe (na tropa os empregados de bar chamam-se barristas). Verifica aqui, verifica ali, tubos e mais tubos, parecia estar tudo bem, não é verdade? Parecia…
Oh barista, dois martinis com gelo, Não há gelo meu capitão…
E mandou-se chamar de novo o tenente (gerente de messe) que mandou chamar alguém que mandasse chamar a assistência técnica (enfim, o leitor já percebeu como é que estas coisas funcionam…). E que venham rápido, Vamos fazer os possíveis senhor tenente.
E por volta das 14:00 do mesmo dia o técnico da máquina de gelo chegou junto da dita-cuja. Olhou para ela, tinha tudo o que era preciso: electricidade, ligação de água e depósito para as pedras de gelo. Carregou no botão e a máquina despejou gelo.
Esta rotina repetiu-se durante a semana já com toda a gente a entrar em colapso por via da rotina alterada em tomar Martini sem gelo. E o tenente a ver a carreira a andar para trás porque o nosso capitão, a mando do nosso major, por ordem do nosso coronel, a mando do senhor brigadeiro, queria a máquina arranjada nem que fosse por “determino e mando publicar”.
E pela enésima (talvez a quarta ou quinta) vez, lá foi o técnico de novo. Oh barista (os civis também chamavam barista ao barista), vamos lá a ver uma coisa: Ao meio-dia e meia nunca há gelo? Nunca! E a partir das duas da tarde já há? É como vê! Hum… (técnico desconfiado). Posso dar aqui a uma volta (o aqui eram as instalações)? Esteja à vontade…
O técnico voltou a inspeccionar a máquina e o local e, não detectando nada de suspeito apenas perguntou para que servia uma cama na arrecadação ao lado da máquina, Para eu dormir, disse o barista, Mas você não dorme na caserna? Não, na caserna ninguém consegue dormir, aquilo é tudo gente doida! E você consegue dormir com o ruído da máquina (naqueles tempos as máquinas de fazer gelo, ao que parece, eram ruidosas), Claro, só a ligo a partir das dez horas quando fecho o bar da parte da manhã (voltava a abrir ao meio-dia)!
A máquina (além de barulhenta) era lenta na fabricação do gelo: só começava a produzir pedras cerca de três a quatro horas depois…
Estava tudo resolvido meu tenente!
António J. Branco, In, Figuras de Cera